Surfista
De manhã cedinho,
pés descalços no seu quarto.
Fecha os olhos e respira,
uma, duas, cinco vezes cinco
em pé, torso nu,
mãos ao pescoço cruzadas.
Sente o coração a bater nos polegares,
uma, duas, cinco vezes cinco.
Desce pelos ombros e abraça o próprio corpo
até ouvir um estalo,
mãos nas omoplatas, cabeça a pousar num braço.
Bum, bum bum,bum
bum,bum
lateja.
Abraça os quadris, barriga que vibra
bum,bum, respira
uma, duas, cinco vezes cinco.
Mãos a construir um trapézio,
no centro o embigo.
Inspira e absorve,
expira e envia
um cordão transparente que cresce
um chorro de luz silencioso,
particulas a brilhar à lua.
Cristais que brilham elevando-se num feixe imaginado.
Cabelo comprido que se move com o ar que se alevanta,
mãos que seguem a luz
extendem-se,
para a frente
para acima
erguem-se,
braços que se esticam
e
devagar
balançam
len
ta
men
te
E atrás deles o torso, a cintura
como as pontas dum canavial em calma,
como um sussurro de brisa no verão,
dedos abertos,
braços que se movem ao sabor da maré mansa
à direita e à esquerda
à direita
e à esquerda
fffuuu, ffffuuu,
do ar ao mar é só uma letra
bumbum
fffuuu, ffffuuu de novo
O mar que chega
fffuuu, ffffuuu,
bumbum.
Maré mansa
areia molhada nos pés
vai e vem água fria que a arrasta.
Enterrado o tornozelo, firma o pé no chão
e depois
_____________
| o nada. |
--------------------
Vai-se o mar, vêem as dunas, asinha os pássaros, as sementes
cria-se o manto, passam raposos, ladrões de ovos.
Atrás chega um lobo tresmalhado, com sede, com fome,
a trotar pelo areal distante.
Bebe água do mar logo, inconsciente e fica com mais sede. Encontra um ninho, câgados recém-nascidos, que sortudo meu amigo.
Acampamentos nas dunas, gentes alegres a nadar à noite, churrascos, peixe frito, risos, praia virgem, fogueiras, amores, rumores, gemidos.
Um pinhal cresce entretanto, o mar retrai-se. Logo é já, tudo e apenas, um recordo salgado no fundo da terra.
Carvalhos, Faias, Nogueiras, passam-se as eras.
Estrelas, nebulosa de Órion, as perseidas, o cuco na primavera, sons estivais que chegam:
Grilos, pirilampos, uma coruja a planar, uma sombra.
Ruído, ratinhos a fugirem assustados, esquios que se agacham,
nada lhe escapa.
Depois da caça pousa no seu ombro direito,
agora é nó de árvore madura, casca rija, garras que se fincam
Cabeça branca, um fantasma,
bico amarelo, cauda do ratinho ainda fora.
Olhos gigantes na noite,
arauto da eternidade
uuuhu uuhu, uuuhu uuhu,
a parceira chama e ela em total silêncio levanta o voo.
Árvore que abre os olhos com a marca das garras. Olha para baixo, pé de árvore que ainda intui quem era, olha para cima e estrelas distantes se espelham na retina.
Via Lactea, Órion, olhos que se lançam
na viagem, incorpóreos.
Precisa dum corpo, sabe disso
ninguem suporta só ser unicamente olhos.
no frio da nada, um corpo se forma, metálico, prateado,
nu,
numa prancha de surf,
reconhece-se a surfar.
É
A singularidade,
Na imensidão.
Melhor, muito melhor, assim
viaja com o ar a bater na sua testa,
Estrelas que passam a grande velocidade
Letra c
299 792 458
no seu peito, a rodopiar nos tornozelos a não-brisa
o ar frio
do vácuo primogénito.
Chega ao centro,
Lá está Ele, Ela, Elú,
a Unidade, fragmentação eterna
É tudo simples afinal,
nunca houve escolha verdadeira
hélio ou hidrogénio?
Qual a diferença?
Ser eterno na presença.
Massa de olhos, corpos, guerras, lagos em paz, abraços,
calor da amizade, riso quente
Homem-mulher-deusa, Tudo
Ouve-se num trovão uma voz feminina: Já queres vir miúdo?
Não, quero apanhar mais uma onda,
ficam mais vagas, mais marés,
ainda não é hoje que me apanhas..
um riso ensurdecedor a trovejar.... hahaha...
apenas porque não me interessa,
quero ver que fazes com o tempo que te resta,
continua a entreteres-te, entreter-me, entre-ter-te, entre-ter-me,
teres-me dentro de ti,
pertences-me, sabes disso
viaja surfista, aonde quiseres,
não há aonde escapar.
Todos virão a mim e você não será diferente.
O meu tempo é meu
e nisso não tens nenhum poder.
Hoje eu ganho e tu perdes de novo. Volto ao meu lugar corriqueiro, pacífico sereno.
Lá não tens lugar, fecho-te aqui para sempre
Sou livre e tenho tempo.
Eu ganho e tu perdes.
Entrelinhas atrapo-te de novo
e navego,
pescador da barca bela,
por marés conhecidos
Eu não fujo,
apenas viajo calmo
até ao abrigo.
Abre os olhos, ó pescador
dá dois passos à frente,
quebra o feitiço
e de novo
vence.
É já muita hora de ir trabalhar