Corrente
A corrente arrastra feliz desgostos, seixos e pedrinhas enquanto a queda das folhas em forma de coração dos vidoeiros alastra floresta adentro.
Choupos de casca branca deixam também cair o seu confete de outono a nosso passo criando um tapete macio e luminoso: amarelo, castanha, laranja... e numa das voltas do caminho, um carvalho americano vira já as folhas a rubro na nossa homenagem enquanto nos saúda com um galho tenro, mão a abanar, num gesto gentil, animado por uma brisa fresca vinda do norte.
Hoje temos sim, finalmente, tempo a um passeio demorado a sós, em paz, e o rio à nossa espera escolhe fazer meandros em forma de Us ou Esses como se o teu nome estivesse repetido uma e outra vez, letras malandras ao ziguezague em curvas impossíveis, enquanto ordena às águas ficarem calmas e gorgulhar de mansinho, apenas como fonte pequenina de sons e letras atiradas só para nós ouvirmos, como música, passeios por um parque ou poemas, que embalam os nossos pensamentos.
O rio é de novo o nosso amigo num dia calmo em que pontes suspensas ou feitas de traves improvisadas e pequenas tabuinhas nos permitem saltitar de um meandro até ao seguinte.
Vou por um caminho que você traçou para partilhar comigo e leio nos seus olhos amor pelas coisas belas, calmaria, confiança e eu sorrio como um pateta enquanto tudo brilha ao nosso redor na luz do entardecer que nunca acaba.
É tudo feito à medida simples e humilde dum passeio alegre e ensolarado de domingo.
No rio, que atravessa floresta e preocupações, não há lugar para mais nada senão a presença dum tempo tudo para nós, que hoje feliz nos obedece.
É por isso, que cada palavra conta, e cada letra fica quietinha no seu cantinho baixo o arvoredo, a espreitar agachadas entre o mato, fascinadas, pelo nosso avançar sem pressa.
Em silêncio, mão e coração, cabeça e pés, pernas e atenção se concentram apenas na beleza da caminhada, nas pequenas coisas banais que acontecem sem ir à procura, como o encontro duma vara apanhada ao acaso, apoio e bengala sempre útil, ou, sem dar por isso, o retorno ao lar em passo acompassado,
lado a lado,
com a simples maravilha a acontecer
das nossas mãos,
a brilhar
à luz do entardecer,
entrelaçadas.