Abril
É abril,
É abril e o vento zoa entre as telhas, levanta paixões e arrasta cadeiras e papéis velhos com a tinta a escorrer...
É abril, e dói
e um turbilhão de emoções alastra e a lua no alto comanda uma nova conjunção de estrelas
a olhar aflita para nós.
É abril, e o inverno e a luz
as sombras e os monstros
digladiam-se
por atrapar o que reste de nós nesta maré que ressona entrando pela rocha adentro
no buraco do inferno
na cova da piedade
Na lágrima fria que escorrega duma lua esbelta de marfim e mármore.
Nada que ela não tenha visto antes
e no entanto a compaixão a invade.
É abril e a vida desalmada rasga a seu passo quaisquer papéis ou regras que outrora quisêssemos manter.
Nada resta (de novo? Sim de novo, qual hipótese senão?) senão fincar os pés bem firmes no chão, olhando para o torvelinho cá de cima e
segurar no alto crianças e convicções
entre as mãos rudes.
Mãos-ninho, mãos-escudo, mãos-balança e equilíbrio....
e nuvem de algodão e construção firme onde brincar e ser, adormecer e deixar vir o sono inocente onde se tecerão os sonhos todos e sementes e aventuras crescerão, abrigadas do vento leste
enquanto a água escorre e pinga dos cabelos, da barba e peito nu e de antigos papéis e sonhos, ruídos, que descem procurando novas formas sulcando a minha pele.
Eu,
gigante,
nu,
com veias de azul do mar intenso e corpo rijo e branco
David de mármore que cobra vida apenas dedicado agora ao resgate doutros,
sou dono do meu génio, de feitiços e poemas.
Eu, entranhas-mármore, de mármore as mãos, a pele, o sangue, as veias
observo o redemoinho da banheira a escoar pelo buraco, e o turbilhão de emoções que abalam o nosso espaço,
enquanto as minhas mãos no alto seguram crianças, sonhos e brinquedos.
Os meus lábios hoje frios
outrora carregados de luxúria e decisão,
também hoje estão selados.
Pelas suas obras os conhecereis...
Cultivemos pois, a sabedoria dos céus.
Nada resta senão recomeçar do zero
Mais firme, mais sábio,
num tempo algures, alhures, além, aqui no centro da existência que criei e rego, abrigo e cuido, aqui mas no futuro,
Futuro
onde é que ele vem?
u-lo?
Ali, talvez, nesse novo não-lugar
onde eu-outro, talvez,
pastor de sonhos infantis
guardião da paz
e feiticeiro oculto entre névoas, lagos e montanhas
Talvez ali
serei por fim dono de mim por inteiro,
livre enfim para falar de novo
e me entregar sem receio ou medo
Senhor de barco próprio a navegar
e dono do meu tempo.
Sei,
compreendo agora
mestre-hora,
Sábio entre os mais sábios:
Neste beco escuro onde o tempo se escreve às avessas
quanto mais devagar eu andar
maior o avanço e maiores serão os nossos passos