Mar de névoas 2# histórias de ida e volta#
©imaxesdaterra.com
Pedra da Seara, eu te pertenço, e usufruo o teu poder para viajar em sonhos.
Bendito espaço, sacro, e de espaços primigénios e de perigos cheio para quem desconheça o caminho ou a ambição deixe cego aos avisos dos anciãos.
Montanhas com o seu tear de ouro oculto, algures, em profundas covas de altura, ali bem fundo onde se houve água a pingar eternamente num lago escuro a perder de vista onde nada se mexe.
Covas onde ninguém penetra pois lanterna, facho de palha, telemóvel ou quaisquer luzes do mundo exterior apagar-se-ão sempre com um sopro, uma queda da mão, um escorregar de dedos a transpirar profusamente, presenças sibilantes impossíveis de nomear vindas das primeiras eras fazem que um suor frio corra pelo espinhaço a tremer. Frio, um frio antinatural que avisa para ires embora...E quem te avisa teu amigo é.
Cova da moura e da serpe donde os simples humanos saem, se puderem, emagrecidos, nus e descalços, de cabelos brancos e arrepiados e olhares esbugalhados e vidracentos à beira da loucura quando finalmente reencontram a saída : não entrem ali, não entrem, nada há de bom nesses lugares.... ficam a murmurar entre dentes
A montanha nem sempre é bondadosa...
Pedra da Seara, qual o meu destino? Seguirei às aves da noite nos seus voos ao luar em eterna poesia? Irei à cova enfrentar o que quer que ali more na solidão, ali onde os olhos de nada servem e o pingar eterno do lago escuro chama por mim e pela minha ousadia... Irei vencer os terrores daquilo que não deve ser nomeado? Ou porventura comandarei novas viagens em dias claros e despejados, onde a olho nu rato ou cobra serão a minha caça?
Qual a tua resposta? Responder-me-ás agora?
Em vão espero por um sinal dos deuses mas nada se mexe e o vento nada diz a assobiar entre pedras aguçadas como dentes de gigante esquecidos entre o mato baixo e ralo...
Ao longe, em baixo, na aldeia, uma criança ri com as brincadeiras dos velhotes: asserrim asserrão, esta boca pede pão,
Aserrim asserrão pede queijo pede pão....
E eu vou ter com eles pelo caminho esculpido na lage limpa onde nada cresce, seguindo rodeiras centenarias ....
Desço ao encontro de mim próprio e enquanto avanço vou descobrindo aos poucos velhas roupas atrapadas e gastas em silvas dantes, tojos velhos e gesteiras milenares....e vão passando para trás idades e troços de trabalhos e vidas doutros que comigo caminharam, e nus vão eles aparecendo, colocando as fardas e juntando-se ao meu passo sorridentes: o do sequeiro, o tradutor informático, o de Pontevedra a polir portas e armar móveis de cozinha em Compostela, os de Lugo no alto da serra, ali na portela, plantando vidoeiros entre lobos e urzeiras, o padeiro e vendedor contigo enamorado, de feira em feira e bebé no colo, o ativista, redator e porta-voz, de jornais revistas e paredes que falam, cartaz e cola e stencil à moda antiga, o carpinteiro e aprendiz e que lindo cheiro o da madeira e que bons recordos, o estudante e produtor, e o aroma do tomate, da cenoura e da castanha seca guardada na arca depois de pisada e escolheita, o camponês e o cheiro a terra seca, esterco e poeira na sacha das batatas e do milho e o som do cereal dançando com o vento.... poderá haver som mais lindo do que o do centeio a bater e dançar um contra o outro prenhes de alimento?....
eLe a conduzir um trator velho, uma e outra vez com pedra e lenha, e pedra e terra, e esterco e móveis e filho no colo, de olhos arregalados e mão no volante....
Ele feliz em Lisboa, paragem no Marquês, na avenida da Berna, mas que lindo o jardim da Gulbenkian e morar ao pé do miradouro.... Ai os finos no Bairro alto à noitinha! E faixa e cola e paredes que falam uma e outra vez, e lá está também o operário e o construtor no alto dum andaime a colocar janelas e a assobiar numa casa, todo ensonhações entre a névoa, enquanto olham para mim e o meu passo firme e certo pela vida lá do primeiro andar duma casa toda em pedra ....
Espetador no Teatro da comuna, eu sou o comuneiro da Casa nova, o vizinho certo, sou eu, aquele que trouxe a água e a esperança ao vilarejo e convenceu os reticentes, aquele que ficou a cantar em baixo a chuva enquanto podava castanheiros durante a trovoada....
Esse sou eu.
Eu
sou .L.
Eu sou a multidão vestida com mil roupas distintas e sapatos diferentes que finalmente me acompanha e segue o meu passo e já logo se esvoaça e entra pelo coração adentro como lembranças nevoentas ao chegar à fonte do Pereiro.
E logo ali, na porta do forno dos Paradinheiro, estará a santa inês à minha espera a segurar meu filho primeiro, a cantar canções de arrolo enquanto eu, porta adentro, com atados de uzes e carqueija, roxarei o forno até ficar todo ele todo branco.
Eu
sou
.L.,
O lenhador que enforna o pão
O pastor de árvores,
Aquele por quem você procurava.
O amo do lume enraivecido.
É ele quem me aquece, envolve o espaço todo e queima o meu cabelo branco,
mas sou eu quem comanda a sua magia.