Serendipidade
Sem olhos para ver, protegido pelo musgo da floresta, a pele fica insensível à dor ou aos problemas do mundo. Através dos seus pés descalços uma nova conexão gigantesca, uma rede nunca dantes partilhada invade-lhe o corpo e pulsa como uma energia elétrica que atravessa o seu ser. Perde-se de si, esquece-se, oblitera-se a si próprio. Qualquer referência pessoal fica apagada por um sonho lúcido em que navega. Esvae-se num anonimato vegetal que o abraça no seu colo e desaparece.
Da unha do mindinho no pé até às ponta dos cabelos, da barba ao pênis, às nádegas, ao nariz, às bochechas; dos mamilos ao lóbulo das orelhas, dos braços às coxas passando pelo brilho nos seus olhos ate aos cantos da boca, no corpo por inteiro, impulsos como raios azuis a latejar percorrem, pausadamente, numa cadência elétrica constante, a sua imagem física a flutuar no vácuo. Sim, ainda, nesse estado onírico, ensonhado, etéreo, precisa de fixar esta imagem corpórea de si próprio para se rever.
São tantas as informações que a floresta partilha que se esquece de si num tempo irreal que não é capaz de calcular. Há tanto para ver, tanta informação! E é tudo tão pausado, numa língua de raízes construída apenas com imagens estáticas, isoladas, fixadas a partir daquilo que em verdade importa, imagens que se ligam, amontoam e acontecem ao mesmo tempo com sentidos, conexões e dimensão alheios à lógica humana.
Aqui apenas o verdadeiro se revela, partilha e permanece guardado. Um museu vivo baixo terra em permanente atualização. Emoções e aromas em conexão com imagens e vestígios doutros sussurros roçagados pelas folhas. Canções de todas as épocas humanas em mensagens que entram pela seiva adentro, descem da copa até às raízes e acabam na rede de hifas da terra.
Aqui não há você ou eu nem nada singular, apenas um nós difuso e inexplicável que não conhece os conceitos de antes nem depois.
No meio dum furacão que me empurrou bem ao centro de mim próprio, foi a escrita e o silêncio que por vez primeira me salvaram encontrando-me. Agora, hifas em rede me embalam com canções de todas as idades enquanto uma frase vegetal vai chegando como uma mensagem singular, um presente para mim, recém-chegado, uma compreensão que me invade e atira na cara uma certeza, talvez a única dentre tantas falsas dúvidas e misérias humanas que estão sempre à espreita: a incessante procura dum propósito maior.
"Serendipidade". "Serendipidade" ouço alto e claro e da ponta do cabelo às gemas dos dedos, essas que quase podem tocar você e acordá-la, uma nova descoberta, um vocábulo redondo, alimenta a minha seiva e a renova.
"Serendipidade". "Serendipidade. O belo acaso que desperta o sonho adormecido" e milhares de vozes agudas, rápidas, graves, pausadas repetem a mensagem em diferentes tons e velocidades que se amontoam na consciência.
"O belo acaso". A mensagem penetra o meu ser e me envolve a gratidão, a paz de não ter que remar a lado algum, apenas sentir, amar, ficar a pensar num bom vinho amadurecido, mestura de castas na proporção certa, ou sonhar com formas de mulher que me namoram.
Vejo o passar das estações. E vides que no inverno pareceram mortas rebentam em primavera e muito logo passam para o estio a encherem-se já de cachos dourados e vermelhos.
Ai a verdadeira beleza das vinhas! No outono, da panóplia de cores que se mostram, do lilás ao laranja, dos tons de verde e amarelo todos, é na colheita que a vinha se entrega aos seus cuidadores e rebenta a festa do amor, da juventude inconsciente, do cantar alegre do vinho verde, da eterna alegria.
Poderá ser a vindima a maior das celebrações camponesas? Formas de mulheres e homens que se abraçam na noite, a adega ainda com a luz acesa, mais cubas cheias, música de gaitas a soar pela noite afora, o trabalho, por hoje, apenas por hoje, acabado; são festas à noite, trabalho duro de dia, é tempo de víndima. Poderá ser o Outono a melhor das idades? Sim, também eu já estive ali.
Você e eu sabemos que na escrita nada é impossível. E eu poderia imaginar você em qualquer nuvem ou sombra da floresta, ou nas névoas matinais que penetro pela estrada afora indo ao trabalho.
Imagino você e as suas curvas muitas vezes em silêncio enquanto você dorme ao meu lado e eu não posso pregar olho. Sinto-me incapaz de te descrever como não poderia descrever toda a beleza dos corações que palpitam ao uníssono.
"O belo acaso", olhar a vida com olhos de criança, amar, sentir, ser presente, viver plenamente consciente, sem nada pedir, mensagens que a floresta me envia e eu nem sei como pagar tanta bondade, labrego, galego, obrigado. Obrigado. É assim a palavra com que se agradece, obrigado fico, fico em dívida e não posso evitar o querer devolver à floresta qualquer mensagem de esperança naqueles que caminham.